Zurich Maratón de Sevilla 2024: um sub-3 que deixa sabor a pouco

A evolução é algo incrível. Se por um lado nos coloca nos píncaros quando atingimos um determinado objetivo, por outro é capaz de ser madrasta e fazer com que, aquilo que um ano antes seria brutal, agora seja até visto com um sentimento amargo. É um pouco essa a história desta minha Maratona de Sevilha. Se fosse há um ano, sair com 2:59:26 teria sido motivo de uma enormíssima celebração. Mas agora, uns 365 dias depois, fazê-lo não me deixa totalmente satisfeito. É curioso ver as voltas que a vida dá…

Há um ano, nesta mesma Maratona de Sevilha, tentei pela quarta vez baixar da barreira das 3 horas. No ano anterior tinha ficado muito perto, quando acabei em 3:00:55. Nos meses seguintes voltei a bater à porta, tanto em Berlim (3:01:01) e Frankfurt (3:00:26). Nessa quarta tentativa fiquei mais longe do que nunca, num dia em que sabia que tinha poucas chances de consegui-lo. Mas tentei. Tentei e falhei redondamente. O objetivo aí foi adiado, mas viria a ser alcançado primeiro em Praga (2:59:00) e depois em Chicago (2:58:06). Com dois sub-3 no bolso, este ano o objetivo tinha de ser outro. Não podia ser “só” o sub-3. Muito mais quando tinha vindo de três semanas de treino brutais no Quénia, em que me senti mais forte do que nunca.

Não podia apontar a menos do que baixar das 2:58. E chegar-me perto das 2:55. Tinha forma, experiência e um percurso para isso. Mas a maratona, tal como a evolução, consegue ser madrasta. Consegue ser brutal. E é esse mesmo o seu encanto. Por mais bem preparados que estejamos, só no dia, provavelmente nos últimos metros da mesma, é que saberemos exatamente o sabor que nos vai dar. Neste dia, para mal dos meus pecados, o sabor foi com um ligeiro travo amargo.

E não há forma diferente de dizê-lo. O grande culpado fui eu. A forma estava lá. O treino tinha sido bem muito feito. As pernas podiam não estar totalmente frescas (a longa viagem do Quénia ainda se notava), mas tinham força para derrubar as 2:58:06. Mas isso de pouco vale quando, mesmo à 40.ª maratona, somos capazes de cometer erros de principiante.

No meu caso houve dois: a falta de descanso e a deficiente nutrição no dia anterior. E logo eu que sou um chato com isto!

O aspeto do descanso é, se calhar, aquele que mais pesou, mas é também aquele que sou capaz de me perdoar. O da nutrição… não. Porque essencialmente decidi não comer muito mais por temer que um eventual peso extra me afetasse. Mesmo tendo fome. Um erro de principiante que, feitas as contas, foi decisivo no que aconteceu nesta prova.

Um ‘afilhado’ bem mandado e cheio de força

Esta minha maluquice das maratonas tem muitos aspetos positivos, mas poucos são tão satisfatórios como a sensação de saber que inspiro e ajudo, um bocadinho que seja, novas pessoas a meterem-se nesta empreitada. Neste domingo, no meio de vários atletas que me falaram antes da estreia, tive a honra de ajudar um estreante de princípio até perto dos 30 quilómetros. A ideia era ir até ao fim, mas sabia que tudo podia acontecer e esse plano ir por água abaixo.

0 aos 21k: 1:27:55
21k aos 32k: 2:12:26
32k aos 40k: 2:44:50
40k aos 42k: 2:53:38

Não tenho problemas em partilhar isto. Este era o meu plano de prova. Falhei-o por 6 minutos. Longos 360 segundos… Demasiado tempo! Sei disso. Mas diz-se que a sorte protege os audazes. Neste dia não me protegeu, é certo, mas também sei que não ficaria totalmente satisfeito comigo mesmo se não tivesse tentado.

A primeira meia maratona foi quase uma formalidade. Digo “quase” porque, ali pelos 16 quilómetros, senti que algo não estava totalmente bem. Íamos a 4’10, um ritmo que teria de ser relativamente fácil nesta fase, mas para o qual me tinha de esforçar mais do que queria. Quando chegámos aos 21 quilómetros íamos no tempo certo, mais coisa, menos coisa (1:28:00). Era perfeito no relógio. Mas o que estava longe de ser perfeito eram as sensações. Ali naquele momento cá dentro já sabia que não ia dar para fazer o que tinha planeado. Ali, naquele momento, cá dentro definia que ia tentar levar o Miguel até onde fosse possível. Durante uns 28 quilómetros não o deixei passar pela frente. Era quase sempre eu a impor o ritmo. Pouco depois da meia maratona até aumentei o ritmo para as 4’05, para cumprir aquilo que tínhamos definido. Pode ter passado fatura, pode. Mas não é isso que importa.

Aos 28 quilómetros, percebi que era hora de deixá-lo ir. Acho que nem tivemos de dizer nada um ao outro. Foi quase um acordo tácito. Naquele momento o Miguel foi, mas não fiquei sozinho. Neste comboio também vinha o Vasco Duarte, outro grande amigo que a corrida meu deu. Em 2021 foi ele um dos grandes responsáveis pelo recorde que corri na meia do Porto. Neste dia também foi decisivo por ter estado lá. Também por ter percebido que não estava bem e não ter deixado de estar comigo (até aos 41…). Nesta maratona sofri, morri e ressuscitei algumas vezes. O Vasco esteve lá sempre.

Máquina de calcular ambulante

Quando cheguei aos 32 quilómetros sabia perfeitamente que as sonhadas 2:53 não iam acontecer. Apesar de estar a cumprir de forma religiosa a nutrição planeada, o meu corpo já vinha dando sinais de que isso não ia chegar. Às 2h30 meto o último gel. Faltavam 6 quilómetros. Nessa altura a minha cabeça só fazia contas. Falhado o objetivo das 2:53, o objetivo seguinte não passava por outra coisa que não bater o recorde de Chicago. Não tinha grande margem para isso, pois tinha de fazer a segunda em 1:30:00 para consegui-lo. Ainda para mais quando as pernas iam falhando um pouco mais quilómetro após quilómetro…

Os dois anteriores já tinham sido em clara quebra: 4:28, 4:26. Os seguintes foram na mesma linha: 4:35, 4:17, 4:34… Faltavam 3 quilómetros e a minha matemática (de quem reprovou no 7.º ano) dizia-me que não tinha margem para correr muito mais lento do que 4’30 até final se queria repetir o sub-3. Já tinha esquecido o recorde pessoal. Aos 39 já estava totalmente em modo sobrevivência. E mais fiquei quando, na Alameda, tenho um daqueles episódios que apenas tinha visto em vídeos. As pernas começam a falhar-me. De repente fico sem força. Por instantes vejo-me a colapsar e ficar ali. Tentei controlar-me. Abrandei um nadinha o ritmo, respirei fundo e consegui continuar. O piso não terá ajudado, mas foi um susto daqueles.

Faltavam uns 2300 metros. Consegui recompor-me e tentei até aumentar o ritmo. No esforço parecia que o tinha feito, mas estava longe disso. O relógio aponta 4:34 novamente e 4:38 no seguinte. Faltava pouco mais de um quilómetro. Infelizmente, não seriam mil metros de alegria, em comunhão com o público. Eu ouvia-os, mas não respondia. Só vibrava com eles cá por dentro. Porque por fora a minha energia (a pouca que restava) era totalmente canalizada para fazer mover aquelas duas pernas que naquele momento parecia dois troncos de eucalipto. Pesadas, pesadas…

Quando chego à rotunda que antecede a meta procuro absorver aquele apoio. Mesmo que não o exteriorizasse, estava a fazê-lo interiormente e foi isso que me levou até ao pórtico desejado. Olho em diante, faltava 1 minuto para as 3 horas. Tinha qualquer coisa como 80 segundos para fazer 200 metros. Respirei fundo e tive a certeza: ia voltar a fazer sub-3. Num mau dia no escritório, fazer esta marca era a consolação que precisava. Era o objetivo mínimo. E consegui-o. Não me fez sair totalmente satisfeito, mas serviu para atenuar a desilusão.

Se calhar nem tanto a desilusão por não ter feito o desejado novo recorde ou o 2:53. Desilusão porque, mesmo no dia em que fechei o desafio das 40 maratonas, com tanta experiência acumulada, voltei a cometer erros básicos. Faz parte da jornada, faz parte da maratona. Não devia, mas faz. Faz porque somos humanos. E faz porque a maratona é brutalmente fascinante. E é por isso que gosto tanto dela.

Em abril, na maratona dos meus sonhos, em Boston, vou tentar destes assuntos inacabados. O objetivo será fazer o que não foi feito em Sevilha. Provavelmente com uma estratégia diferente, mas o tempo final a bater será aquele. Posso voltar a não conseguir. Mas vou tentar. Porque prefiro tentar e falhar do que viver sem correr riscos e ficar a pensar que podia ter arriscado e não arrisquei.

Não tenham medo de arriscar.

Como eu arrisquei seis dias depois na Meia Maratona de Ras Al Khaimah. O resultado? Um novo recorde pessoal (1:23:57). Foi a prova de que Sevilha foi mesmo um dia mau no escritório e que o treino estava lá. Estava tudo lá. Menos eu. Um dia estará!

E, a fechar, sabem o melhor disto tudo? Aquilo que me faz esquecer o ter falhado o objetivo em Sevilha? Isto! Obrigado, amigos!

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