Maratón de Sevilla: Novo recorde com um (super) split negativo

Já passaram oito dias desde que cruzei aquela meta em Sevilha. Passaram oito dias desde que voltei a ser feliz em Sevilha. Posso um dia enganar-me, mas correr esta maratona irá ser sempre sinónimo de felicidade. Sevilha tem qualquer coisa. Tem qualquer coisa de mágico, tem qualquer coisa que nos faz superar todas as adversidades, tem qualquer coisa que nos faz esquecer qualquer dor que surja. No ano passado, o lema era “Sevilla es oro”. Este ano o lema pode ter mudado, mas a cidade e a sua prova ficaram ainda mais douradas.

Cheguei a Sevilha pouco mais de dois meses e meio depois de ter enfrentado a Maratona de Valência e sabia perfeitamente que poderia pagar caro essa curta diferença de tempo entre uma prova e a outra. Como também poderia pagar caro o facto de ter feito uma preparação de dois meses, mas também a carga a que me submeti neste espaço de tempo (terei feito 600 quilómetros desde meados de Dezembro). E talvez por isso decidi entrar em prova de mente completamente limpa.

Como vos disse antes da maratona, não queria revelar o meu tempo alvo. Não queria colocar essa pressão em mim mesmo, especialmente depois do que me sucedeu em Bilbau. Queria divertir-me, queria desfrutar da maratona e só depois disso apareceria o objetivo de tempo. E agora que a maratona já passou, vou revelá-lo: primeiro objetivo era baixar das 3:29:53 de Valência; o segundo era fazer sub 3:25. Secretamente sonhava finalmente baixar das 3:20, mas optei por seguir as instruções de quem está lá para me indicar o melhor caminho: o meu treinador.

No dia anterior ligou-me a meio da tarde e deu-me a tática. Inicialmente disse-me para tentar fazer uma prova ali pelos 4’50, mas depois de falarmos sobre a presença de lebres na prova mudou o plano.

“Até aos 28 km vais com o balão das 3:30. Dos 28k aos 36k deixas o balão e vais à tua vida, ali pelos 4’40/4’45. Dos 37k até ao final vais a 4’15/4’20”.

Ouvi as indicações e aceitei o desafio. Ele sabia o que estava a dizer, mas não vou negar: estava MUITO reticente em conseguir fazer este plano, especialmente aquela parte final. Afinal de contas, teria de puxar a ritmos de meia maratona nos últimos 5 quilómetros da prova, naquela altura onde as pernas estão mesmo a dar as últimas.

E uma contratura na véspera da maratona?

Na altura não lhe disse, mas já àquela hora sentia uma dor bastante desconfortável no quadricep. Não sei bem como, mas depois do treino de ativação matinal, com a minha malta e os da New Balance, fiquei com um desconforto que se agravou com o passar das horas. Tinha ganho uma contratura na véspera da maratona. “Ó sorte!”, pensei eu… Não tinha o rolo de libertação miofascial comigo, por isso tive de desenrascar com a bola que o Hugo tinha levado. Dei um jeitinho na véspera, mas aquilo continuava mal.

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A grupeta depois do treino de ativação

Acordei no domingo pelas 5:30 (três horas antes da partida) e a dor ainda lá estava. Com a pressa de tomar o pequeno almoço e o entusiasmo pré-prova nem pensei muito nisso, mas duas horas antes fiz uma última tentativa para tentar libertar um pouco a dor. Voltei a passar a bola e arranquei rumo à zona de partida. Ainda sentia aquela dor e o facto de estar bastante fresco (estariam uns 7ºC) fazia-me temer que a coisa não corresse bem.

Mas lá fui rumo ao Paseo de las Delicias. Eu, o Hugo, a Joana e o Nuno. Ali comigo estavam três estreantes. Todos eles nervosos pela estreia, mas claramente preparados para assumir o desafio de encarar aquela aventura que apenas 1% da população mundial é capaz de conseguir. Fazer uma maratona não é para todos. E eles já eram uns heróis por estarem ali naquela gélida manhã sevilhana.

Na véspera procurei ajudá-los da melhor forma possível: tentei passar conselhos utilizando a (curta) experiência de seis maratonas que tinha, procurei tranquilizá-los, surpreendi-os com mensagens do Daniel Faro (o treinador da Joana e do Hugo) e também do Gustavo Maia. Aquela maratona tinha de ser uma experiência para recordar, especialmente depois de uma caminhada tão dura e tão bem sucedida da parte deles na preparação.

Andámos uma meia hora até à zona da partida, tendo pelo caminho apanhado a Cheila e o Paulo. O sexteto estava composto. Naquele momento estavam reunidos três maratonistas, com 17 maratonas em conjunto, e três estreantes. Horas depois a conta subiria para 23 maratonas. Tinha a certeza disso!

Teremos chegado à zona da partida uns 45 minutos antes. Fomos diretos ao bengaleiro, ficamos por ali à espera de reunir mais malta, tratámos do último xixizinho (foram três na verdade!) e fomos em direção às caixas de partida. Como partimos em caixas separadas, despedimo-nos, desejámos boa sorte uns aos outros, na esperança de dali a três horas e pouco nos voltarmos a encontrar, desta feita com uma medalha de maratonista ao peito.

8:20 e já estávamos na nossa zona de partida, na caixa para os atletas que correm entre os 3:15 e 3:30. De imediato olhei em volta e vi o balão das 3:30. Era a ele que tinha de me agarrar.

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Momentos depois da partida. Eu devo estar por ali…

Dos 0 aos 10k: A dor sempre lá presente
49:31 minutos (@4’57)

8:33 – partida! Arrancava a minha sétima maratona. Não havia volta a dar. Agora só podia parar dali a 42,195 quilómetros, de preferência ainda antes do meio dia. O primeiro quilómetro fez-se de forma tranquila (5’23), mas sempre com o balão ali bem perto. Mesmo numa estrada bem larga, o arranque foi ainda algo confuso, mas ainda assim rapidamente descemos o ritmo abaixo dos 5’00.

Da minha parte foi relativamente tranquilo fazer estes primeiros 10 quilómetros, mas havia algo que não me deixava totalmente confortável. Aquela dor no quadricep. Talvez por não estar bem quente, ainda sentia o desconforto, não conseguia correr de uma forma natural. Lembro-me de ter sentido até que a minha forma ‘alterada’ de correr me fez ter uma dor na planta do pé. Estava claramente a compensar de alguma forma, o que me podia estragar a prova por completo – até porque ainda tinha MUITO quilómetro pela frente.

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Quando o grupo das 3:30 ainda era enorme…

Dos 11 aos 21k: Até o pacer tem problemas…
54:22 minutos (@4’55)
Tempo total: 1:43:53 (4’55)

Passámos à meia maratona com um minuto e pouco de margem para o parcial estimado das 3:30. O pacer estava a ser bastante certinho e estava no bom caminho para levar todo aquele mar de gente até ao seu objetivo, mas até ele teve problemas. Ali pelos 15 quilómetros, já depois de termos dado uma volta (pouco interessante…) na zona oposta do rio, em Triana, noto que ele passa para o outro lado da estrada em ritmo acelerado. Problemas fisiológicos…

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Muito do que fiz nesta prova se deve a este grupo. Obrigado!

O grupo lá seguiu, mas sem qualquer figura a ditar o ritmo. Era hora de olhar o relógio e tentar manter o ritmo sempre ali certinho entre os 4’50 e os 4’55. Olhando para os parciais, acabámos por conseguir fazer boa figura sem a presença do balão, que voltaria a surgir algures pelos 17k. Agora com um grupo ligeiramente mais curto, mas mesmo assim ainda com um grande pelotão em busca de quebrar aquela barreira das 3:30.

Nesta fase senti-me a ir abaixo (ainda afetado pela dor na coxa e no pé), tanto que acabei por descolar do balão. Terei deixado uma margem de 200, 300 metros a determinado momento mas, ao invés de entrar em pânico, optei por me manter tranquilo ali atrás. Longe da confusão e com uma margem de segurança. Sabia que tinha de conservar energias para a fase final…

Dos 21k aos 30k: A preparação mental para o verdadeiro desafio
43:15 minutos (@4’51)
Tempo total: 2:27:08 (4’54)

O plano, conforme disse acima, era deixar o pacer das 3:30 aos 28 quilómetros, mas nesta fase da prova finalmente me comecei a soltar. Anulei aquela margem de 200, 300 metros, até porque o grupo agora sim começava a encurtar e rapidamente me coloquei no topo do grupo. Por vezes até passava à frente, mas sempre dando uma olhada para trás, para não fugir em demasia.

Até que aos 27 me distraí, não olhei para trás e quando dei por mim já tinha uns 400 metros de avanço. Pronto, era hora de assumir a segunda fase do plano. Era hora de apertar o ritmo. A ordem era clara 4’40/4’45. Mas antes de me focar no que aconteceu logo a seguir, vou recordar o que me passou pela cabeça quando superei os 25 quilómetros.

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Já sem o balão das 3:30 por perto…

O facto de nesta (espécie de) preparação nunca ter passado desta barreira. Iria acusar a falta desses quilómetros nos longos? Tinha receio da reação do meu corpo, mas também sabia que ele tinha de estar mais ou menos preparado para superar esta barreira, até porque no último ano terei seguramente feito mais de 10 treinos acima dos 30 quilómetros. Tinha de afastar estes pensamentos negativos… e lá o fiz.

Já a solo, entregue ao meu próprio destino e àquilo que o relógio ditava (e o que pernas aguentassem), chego aos 30 quilómetros em 2:27:08 (média de 4’54). Estava no ritmo indicado para esta fase e estava finalmente a sentir-me solto e seguro de mim. A tal dor no quadricep tinha deixado de se notar, a minha passada tinha voltado a ser ‘normal’ e estava pronto para atacar aqueles últimos 12 quilómetros.

Dos 30k aos 40k: Começa a loucura…
46:11 minutos (@4’37)
Tempo total: 3:19:01 (4’50)

Sabia que a próxima fase do plano desta prova só chegaria aos 37 quilómetros, já perto da zona histórica, mas pouco depois dos 30 quilómetros senti-me solto em demasia. Efeitos da multidão que começava a ser cada vez maior junto da estrada. Não que até ali não tivéssemos muito apoio, porque efetivamente o tivemos, mas com o aproximar da zona final, naquele momento em que tudo nos dói, começámos a sentir que estamos a ser empurrados rumo àquela meta.

Passo aos 31 já ligeiramente mais rápido do que devia e aos 32 ia metendo-me numa alhada. Ali algures após passar o Estádio Benito Villamarín, a casa do Betis, onde tivemos um incrível banho de multidão a receber-nos, desleixei-me, não olhei o relógio e ia claramente mais rápido do que devia. Ia bem abaixo dos 4’30 e não me sentia nesse ritmo! Mas lá coloquei os travões e corrigi ligeiramente, para passar em 4’34.

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Um dos momentos mais marcantes desta prova

No seguinte voltei ao ritmo indicado, nos 4’40, mas cada vez me sentia melhor. Tanto que os quatro quilómetros seguintes foram todos feitos no limite apontado pelo treinador (4’40). Senti que podia atacar antes. Um quilómetro antes do indicado pelo plano. Podia pagar um preço caro por esta ousadia, especialmente numa maratona, mas queria arriscar, já não queria só o sub 3:25. Queria aproximar-me o máximo possível das 3:20.

E efetivamente escolhi a melhor altura para atacar, porque aqui começava a entrar naquele momento do ‘doping’ humano. Estávamos a entrar no centro histórico, a começar pela mítica Praça de Espanha, e aqui não havia um cantinho junto à estrada sem uma pessoa a apoiar. Os quilómetros seguintes, até aos 40k, mostram o poder destas gentes: 4’32, 4’21, 4’30 e 4’30. Sim, o treinador tinha-me dito que o ‘modo ataque’ final seria entre 4’15 e 4’20, mas estas pernas também não dão para tudo e tinha de viver aquele ambiente.

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A sempre incrível e emocionante passagem pela Praça de Espanha

Era obrigatório sentir aquele apoio, vibrar com as pessoas que faziam incríveis corredores humanos, apoiar os corredores que seguiam em dificuldades e sorrir. Sorrir muito! Quando entrei na zona da Catedral já sabia o que iria enfrentar. E soube tão bem todo aquele banho de multidão!

Quem está de fora pode achar ridículo, mas acreditem que numa maratona o apoio nesta fase é mais eficaz do que qualquer gel, do que qualquer fonte de energia nutritiva. Porque este apoio empurra-nos até à meta, faz com que sejamos capazes de nos superar, quase nos obriga a meter uma mudança abaixo, mesmo que as pernas estejam completamente a dar a últimas.

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A dois quilómetros da meta…

Dos 40k à meta: Dá para repetir este final?
9:33 minutos (@4’21)
Tempo total: 3:22:43 (4’48)

Passo ao quilómetro 40 e sabia que a partir dali não havia volta a dar. Ia ser a loucura de ambos os lados da estrada (qual estrada?)… A meta era diferente da do ano passado e já desconfiava que seria muito mais emocionante, especialmente porque tinha saído de 2018 com um sabor agridoce. Terminar num estádio é sempre uma sensação brutal, mas terminar num estádio apenas com um setor mais ou menos composto não é aquela coisa.

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Passo no pórtico dos 41k e, quase como se fosse propositado, está a tocar em altos berros a ‘In The End’, dos Linkin Park. Era uma espécie de regresso à minha adolescência, quando na altura vibrava em grande com esta banda (ainda agora vibro…). Senti aquele último empurrão. Com a música e com o enorme cordão que se formava. Aqui já não era aquele cordão humano ‘rebelde’. Agora era ao estilo do ciclismo, com barreiras de ambos os lados e milhares de pessoas a apoiar-nos. Entre esses milhares ainda ouvi uns “vai Fábio” e ganhei um bocadinho mais de combustível para atacar os derradeiros metros.

As pernas até podiam estar acabadas, mas era hora do último sprint. Um último sprint com câmara na mão, para registar mais uma incrível jornada maratoniana. Sorri, cerrei o punho, dei uma última força a quem nesta fase estava a sofrer, ouvi um último “vai Fábio” por parte da malta da FHIT-UNIT e, de bandeira às costas, cruzei aquela linha de meta que desejei alcançar durante três horas e pouco.

O tempo: 3:22:43. Um novo recorde por sete minutos e dez segundos.

Em Sevilha, pelo segundo ano consecutivo, não houve muro, não houve quebras no ritmo. Mais: em Sevilha houve sim um super split negativo de cinco minutos! Ali, naquela cidade andaluza, registei as minhas duas únicas maratonas em split negativo, o que diz muito do ambiente e da forma como aquelas gentes nos ajudaram a superar-nos.

Reparem bem nos tempos nas minhas maratonas (as que fiz para tempo)

Sevilha 2018
1.ª meia: 1:49:16
2.ª meia: 1:47:48
Final: 3:37:04 (split negativo de 1:28 minutos)

Madrid 2018
1.ª meia: 1:46:35
2.ª meia: 1:47:01
Final: 3:34:36 (split positivo de 26 segundos)

Bilbao 2018
1.ª meia: 1:42:06
2.ª meia: 1:48:53
Final: 3:30:59 (split positivo de 6:47 minutos)

Valencia 2018
1.ª meia: 1:42:31
2.ª meia: 1:47:22
Final: 3:29:53 (split positivo de 4:49 minutos)

Sevilha 2019
1.ª meia: 1:43:53
2.ª meia: 1:38:50
Final: 3:22:43 (split negativo de 4:57 minutos)

O fim de semana também foi deles

Já escrevi, escrevi e deixo o melhor para o final. Provavelmente poucos irão ler esta parte, mas se calhar ainda bem que assim é, porque sei que quem chegar aqui é malta que gosta verdadeiramente de correr, que vive a corrida como eu vivo, como a incrível turma que me acompanhou vive.

Ao lado do Hugo, Joana, Cheila, Paulo e Nuno (para lá da claque Filomena e da Sidónia) vivi um daqueles fins de semana para mais tarde recordar, tal como vivera de Valência. Partilhámos a viagem, partilhámos horas e horas em Sevilha, fizemos todas as refeições juntos, conversámos, rimos, trocámos memórias, ideias, conselhos… Fomos uma incrível família e, no final, celebrámos o sucesso uns dos outros.

E, por isso, mal acabei, apressei-me a receber a medalha e a recolher as minhas coisas no bengaleiro, pois queria (não podia perder!) ver os meus companheiros a passarem a linha de meta. De câmara e telemóvel na mão, estava pronto a registar o momento. Esperei uns dez minutos, dei força a quem ali passava e de repente começam eles a aparecer. Primeiro o Nuno (que grande estreia!), depois a Cheila e o Paulo (que não vi…) e em seguida o casal estreantes, a Joana e o Hugo.

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Maratona que é maratona… tem Sagres no final

Podia sair feliz de Sevilha. Tínhamos todos conseguido cumprir os nossos objetivos. Tínhamos passado um fim de semana incrível, repleto de momentos fantásticos para mais tarde recordar. E a maior prova disso é que já estamos a pensar voltar em 2020.

Quem se junta a nós no próximo ano?

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A selfie mais endorfinada do fim de semana

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